Home Nacionais e Internacionais A médica brasileira que revolucionou o tratamento do câncer de reto baixo – VivaBem

A médica brasileira que revolucionou o tratamento do câncer de reto baixo – VivaBem

by Infonew

Se hoje pacientes com câncer de reto baixo não são submetidos de imediato a cirurgias de grande porte que podem resultar em complicações graves, é graças à médica brasileira Angelita Habr-Gama. Foi ela que, no início dos anos 1990, apresentou ao mundo o conceito de que pessoas que respondiam bem ao tratamento de radioquimioterapia, com desaparecimento total do tumor, não precisavam ser operadas.

O protocolo pioneiro, baseado em pesquisas clínicas iniciadas por ela e sua equipe enquanto era chefe do Serviço de Coloproctologia da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), é um dos motivos pelos quais a cirurgiã, uma das mais premiadas do Brasil, foi recentemente reconhecida pela Universidade de Stanford (EUA) como uma das médicas que mais contribuíram para o desenvolvimento da ciência no mundo.

Com mais de 200 artigos científicos publicados em revistas indexadas na plataforma PubMed, a médica foi incluída em uma lista que reúne os 2% de cientistas mais citados em várias disciplinas no mundo. O relatório foi produzido por uma uma equipe de especialistas liderada pelo professor emérito John Ioannidis, da Universidade de Stanford, em parceria com a editora Elsevier BV.

Primeira mulher residente em cirurgia geral no Hospital das Clínicas da USP, a médica por trás da abordagem inovadora também foi a primeira a chefiar o departamento de gastroenterologia da FMUSP, onde criou a disciplina de coloproctologia, área que estuda doenças do intestino grosso, reto e ânus.

Habr-Gama atua há décadas na linha de frente da prevenção contra o câncer, tendo fundado a Abrapeci (Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino) e sido nomeada coordenadora no Brasil do Omge (Programa de Prevenção do Câncer Colorretal pela Organização Mundial de Gastroenterologia).

De acordo com o Ministério da Saúde, o câncer colorretal é o segundo mais frequente no Brasil. O Inca (Instituto Nacional do Câncer) projeta cerca de 40 mil novos casos de câncer de cólon e reto no país para cada ano do triênio de 2020-2022. Para a médica, não há dúvidas: é crucial investir em iniciativas para que o diagnóstico precoce seja uma realidade nacional, como campanhas de incentivo à realização regular do exame de colonoscopia.

Uma das mais renomadas gastroenterologistas do país, a médica conversou com VivaBem sobre o tratamento inovador que desenvolveu para o câncer de reto baixo, os resultados alcançados ao longo dos últimos 30 anos e as principais formas de prevenção do câncer colorretal, além da experiência de ter sobrevivido à covid-19 e a presença de mulheres na área cirúrgica. Professora emérita da USP, a cientista de 89 anos atua há seis décadas no centro cirúrgico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.

VivaBem: Por muito tempo, a cirurgia foi vista como a solução imediata para tratar pacientes com câncer colorretal. O que você observou que te levou, mesmo sendo cirurgiã, a questionar essa ideia no início dos anos 1990?
Angelita Habr-Gama:
A cirurgia continua sendo obrigatória para o câncer de reto alto ou o câncer de cólon. Mas, quando falamos do câncer de reto baixo, ou seja, quando o tumor está localizado bem na parte baixa do reto, nos esfíncteres, próximo do canal anal, o nosso protocolo indica realizar primeiro a rádio e a quimioterapia e, depois, estudar o que será feito com os doentes.

A radioquimioterapia, nesses casos, deve ser feita antes de qualquer planejamento na conduta, porque observamos que é capaz de diminuir o tumor. Algumas vezes, esse tratamento, chamado neoadjuvante, também leva ao desaparecimento do tumor.

Quando isso acontece, o que a gente define como “resposta completa”, podemos assumir uma conduta mais conservadora e não operar o doente de imediato. Mas o paciente será acompanhado a cada três meses, para ver se o tumor ainda está ausente ou se ele reapareceu, porque pode ocorrer o reaparecimento. Se o tumor não voltar, a gente continua sem operar o doente, que permanece em observação.

Nós sabemos que hoje, com os protocolos mais modernos de radioquimioterapia, podemos ter o desaparecimento do tumor em mais de 50% dos casos, então é possível poupar a indicação cirúrgica quando ocorre o desaparecimento total do tumor.

VivaBem: Você enfrentou resistência de cirurgiões e oncologistas quando apresentou essa ideia no século passado. E atualmente: como o protocolo é visto no Brasil e no mundo?
Habr-Gama: Hoje, os resultados estão bem comprovados. Nós fizemos um trabalho comparativo que foi publicado em 2004 em uma revista internacional de excelente prestígio, a Annals of Surgery, em que comparamos dois grupos: um grupo grande que foi operado, e um grupo que não foi operado por ter tido resposta clínica completa após radioterapia e quimioterapia, que é o nosso protocolo, reconhecido como “watch and wait”, ou seja, “olha e espera”.

E esse trabalho demonstrou ao mundo resultados positivos, de forma que o protocolo é adotado por grande parte dos cirurgiões e oncologistas, porque é uma oportunidade de poupar os doentes de uma cirurgia grande. A cirurgia para câncer de reto é uma cirurgia enorme, que pode gerar complicações funcionais no pós-operatório.

Além das complicações, pode gerar também a necessidade de uma colostomia definitiva, que muitos doentes se recusam a fazer, inclusive.

A cirurgiã Angelita Habr-Gama, que foi a primeira mulher titular em cirurgia da USP - Karime Xavier/Folhapress - Karime Xavier/Folhapress

A cirurgiã Angelita Habr-Gama, que foi a primeira mulher titular em cirurgia da USP

Imagem: Karime Xavier/Folhapress

VivaBem: Uma pesquisa feita pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP mostrou que a pandemia de covid-19 reduziu em cerca de 60% o volume de colonoscopias. Por que o exame é tão importante na prevenção do câncer colorretal?
Habr-Gama:
A colonoscopia é fundamental para o diagnóstico do câncer colorretal. No caso do câncer do canal anal e do reto baixo, o tumor pode ser diagnosticado com um simples toque retal. Mas a confirmação é feita melhor com a colonoscopia e possibilidade de biópsia, isto é, a retirada de um pequeno fragmento do tumor para exame microscópico.

O toque retal é obrigatório a todas as pessoas que apresentam sangramento. Nem todo sangramento anal é devido à presença de hemorroidas.

VivaBem: O que você faz para se prevenir contra o câncer? Na sua biografia “O Não Não É Resposta” (DBA Editora), escrita por Ignácio de Loyola Brandão, é narrado um episódio engraçado em que você pegou o microfone no aniversário de uma sobrinha-neta para alertar a todos sobre o perigo dos corantes artificiais no algodão-doce que as crianças estavam comendo…
Habr-Gama:
A gente tem que orientar as pessoas a ter uma boa alimentação. O câncer não é só fator ambiental, mas a alimentação é muito importante.

Algumas pessoas já têm uma certa herança, uma predisposição familiar, então quem tem parentes que tiveram câncer de intestino deve estar mais atento para fazer colonoscopia a partir dos 40 anos. Pessoas que não têm casos na família podem começar os exames a partir dos 50 anos.

Mas o câncer colorretal é de fácil diagnóstico, porque com a colonoscopia se faz o diagnóstico. E é um câncer prevenível porque, ao fazer uma colonoscopia, se retira a lesão precursora, que é o pólipo. Ou seja, se um pólipo for encontrado quando se faz uma colonoscopia em uma pessoa sem sintomas, ele será retirado durante o exame. Ao retirar esse pólipo, estamos evitando que ele se transforme num câncer. É um câncer que pode ter diagnóstico precoce e que pode ser prevenido simultaneamente. Por isso, deve ser divulgado e conhecido pela população em geral.

No caso da alimentação, a dieta deve incluir bastante verduras, muitos legumes, mas também deve incluir carne. Não é a carne que faz mal. A pessoa deve comer carne, não muito, mas comer carne associada aos legumes, aos vegetais, às frutas.

Como você bem lembrou, todos, sobretudo e particularmente as crianças, devem evitar ao máximo a ingestão de corantes, porque os corantes favorecem mutações dentro do intestino. É um fator que chamamos carcinogênico, o corante favorece a transformação de células normais em células com defeito, que vão originar o câncer. Devemos ter esse conhecimento e informar que os alimentos devem conter o mínimo de corante, o mínimo indispensável de aditivos.

Angelita Habr-Gama - Karime Xavier/Folhapress - Karime Xavier/Folhapress
Imagem: Karime Xavier/Folhapress

VivaBem: Mas o consumo de alimentos processados, cheios de aditivos, parece estar crescendo cada vez mais, assim como o sedentarismo, que são fatores de risco para o câncer de intestino. Estamos caminhando em direção a um aumento dos casos desse tipo de tumor?
Habr-Gama:
Não há dúvidas de que já há um aumento, tanto é que nos últimos anos aumentou muito a incidência. A carne, por exemplo, não é terrível, mas a carne processada tem muito corante, muita gordura. Devemos evitar a ingestão de alimentos processados o máximo possível.

As companhias já estão mais conscientes e começam a produzir alimentos, mesmo que processados, com menor quantidade de corantes e de aditivos.

Temos divulgado muito sobre a importância da conscientização das pessoas irem ao médico e fazer exames de colonoscopia mesmo sem ter sintomas a partir dos 50 anos de idade. A idade favorece a maior incidência de câncer em geral, particularmente também o de colo retal.

Também é importante evitar a obesidade e não fumar. São todos fatores agressivos, fatores que predispõem ao câncer. Tudo isso gera maior propensão ao desenvolvimento do câncer.

VivaBem: Em 2020, a senhora pegou covid-19. Como se sentiu?
Habr-Gama:
Eu contraí covid quando estava em um congresso fora do país. Viajei, estava em Jerusalém, não se falava em covid, havia muitos orientais. Peguei a doença bem no início, em fevereiro de 2020. Quando voltei, lançamos a minha biografia em março e, dois dias depois, estava muito cansada, com febre. Fui pro Hospital Oswaldo Cruz, onde foi detectada a covid. Fui pra UTI e permaneci intubada durante 50 dias.

Mas tive um excelente atendimento lá no hospital, me recuperei e não tive nenhuma sequela, saí muito bem. E estou trabalhando, como sempre. Não mudou nada na minha vida. Talvez tenha mudado que eu me tornei mais alegre ainda, feliz por estar viva.

Me considero uma sobrevivente. É muito bom a gente viver com a sensação de que é sobrevivente, você valoriza mais cada minuto da sua vida. Continuo estudando, trabalhando, atendo os doentes, opero?

VivaBem: Você mencionou o futuro do tratamento. Haveria algo ainda mais inovador e pioneiro do que o ‘watch and wait’ em mente?
Habr-Gama:
Esse protocolo já está bem estabelecido. Os americanos estão estudando, os europeus também. O que nós temos que fazer agora é cada vez mais utilizar e conseguir inovar, ou criar ainda mais medicamentos quimioterápicos que atuem de maneira mais forte para que um maior número de doentes tenha uma resposta completa.

Quando começamos o protocolo, tínhamos 29% de resposta completa, atualmente estamos com quase 60% de doentes que têm a resposta completa, o que significa que o tumor desapareceu completamente.

Então, estamos com 60% dos doentes sendo acompanhados há muito tempo, com resposta completa. Não só nós, mas também nos protocolos de colegas do exterior também já há um número de doentes seguidos por muito tempo. Claro que há um número de recidivas, mas veja bem: de toda a série dos doentes estudados por nós ou estudados por colegas do exterior, temos índices de cerca de 20% de recorrência, isto é, o tumor desaparece, mas ele pode voltar.

Mas nossos trabalhos estão demonstrando que, desses 20%, se operamos o doente quando o tumor desaparece, os resultados são semelhantes aos dos doentes que foram operados logo que terminou, aquele grupo de doentes que foram operados tendo tido resposta completa.

Então, esse protocolo de “watch and wait”, observação ao invés de operação de imediato, já gerou tanto no país como fora um número muito grande de doentes que não foram operados nunca. No Brasil, o número de pacientes operados diminuiu muito. E isso é muito importante para os doentes.

Angelita Habr-Gama 2 - Luciana Benine/Divulgação - Luciana Benine/Divulgação
Imagem: Luciana Benine/Divulgação

VivaBem: Recentemente, você foi reconhecida pela Universidade Stanford (EUA) como uma das médicas que mais contribuíram para o desenvolvimento da ciência no mundo. Qual o significado desse reconhecimento?
Habr-Gama:
Foi grandioso. Não só para mim, como para toda a geração de jovens. Porque esse reconhecimento não é só pelo meu trabalho, é o reconhecimento por uma vida dedicada à pesquisa, ao ensino. Isso é uma esperança para todos os jovens de que o trabalho, a dedicação e a seriedade geram sucesso. Os jovens têm que caminhar sempre olhando para frente.

A gente caminha, não sabe onde vai chegar, mas a cada etapa que passamos, devemos dedicar o máximo de esforço e fazer da melhor maneira tudo que a gente faz.

VivaBem: Você ocupa uma posição de prestígio em uma das áreas da medicina com menor número de mulheres, a cirúrgica, e enfrentou muitas barreiras ao longo da jornada. O que diria às mulheres que aspiram à carreira de cirurgiã?
Habr-Gama:
Olha, na faculdade de medicina, mais de 50% dos ingressantes são mulheres. E, hoje, na Sociedade Brasileira de Coloproctologia, que tem mais de 2.000 sócios, há um número significativo de mulheres que fazem a coloproctologia, o que inclui clínica e cirurgia das doenças de intestino e ânus. Então, progressivamente nós temos um número grande de mulheres.

Com o passar do tempo, com maior ingresso de mulheres na faculdade, haverá seguramente maior entusiasmo para que grande número delas siga em cirurgia, porque a cirurgia pode ser realizada perfeitamente em igualdade de condições tanto pelas mulheres como pelos homens.

Hoje, é isso que está acontecendo, é uma somatória de capacitações. Essa equidade de gêneros só gera progresso, a somatória de condutas e de pensamentos diferentes dos diferentes gêneros só soma.

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