O fascínio pelo desenvolvimento do cérebro e pelo tempo surgiram muito cedo. Quando Dean Buonomano tinha 9 anos, nasceu a sua irmã mais nova, e “ver a transformação de um bebé, de um estado de completa dependência para o desenvolvimento das capacidades motoras e mentais, é algo excecional”. Um pouco mais tarde, recebeu do avô um cronómetro. “Comecei a cronometrar tudo: quanto tempo demorava a resolver um quebra-cabeças, a correr de lá para cá…”, conta o neurobiologista norte-americano, numa entrevista em inglês e em português, já que viveu parte da infância e da juventude no Brasil. Autor dos livros Brain Bugs: How The Brain’s Flaws Shape Our Lives e Your Brain is a Time Machine: The Neuroscience and Physics of Time, esteve em Portugal para participar no simpósio da Fundação BIAL, intitulado Aquém e Além do Cérebro, dedicado ao mistério do tempo.
Na Neurociência, o objeto de estudo está igualmente encarregado do estudo. Isso pode tornar-se um pouco esquizofrénico?
Talvez seja um pouco narcisista [risos]. É algo de muito profundo saber se o cérebro é realmente capaz de entender o cérebro. Não conhecemos a resposta, mas estamos a fazer progressos. O contributo mais forte da Neurociência para o futuro da Humanidade talvez esteja no facto de ajudar a entender porque fazemos certas coisas: porque temos tendência a discriminar certas pessoas, porque podemos ser manipulados pelas fake news, porque votamos de certa maneira, porque não pensamos suficientemente no futuro, por exemplo no que diz respeito às alterações climáticas.
A capacidade de medir o tempo avançou significativamente, mas a nossa compreensão do tempo mantém-se com muitas incógnitas. Como podemos definir o tempo?
Sim, a capacidade de medir o tempo é absurdamente precisa, medimo-lo melhor do que qualquer outra propriedade física. Ironicamente, não temos uma definição universal do que seja o tempo. Em parte, porque não é uma coisa; é usado para muitos contextos diferentes. A definição mais comum refere-se ao tempo do relógio, que é apenas uma padronização, não é nada de substancial ou de palpável. É uma abstração que usamos para quantificar a mudança. Distingo ainda outros dois tipos de tempo: o tempo subjetivo, que é a nossa perceção da passagem do tempo, esta experiência subjetiva de como sentimos a transição do passado para o presente e para o futuro, que às vezes parece que passa muito rápido ou muito devagar; e o tempo natural, o da Física, que levanta a questão de se saber se o tempo é uma dimensão igual ao espaço e qual é a natureza do tempo.
De que forma o cérebro conta o tempo?
Há um contraste interessante com os relógios feitos pelos humanos. Os relógios atómicos são absolutamente incríveis, marcam picossegundos, nanossegundos, minutos, horas, dias, meses, anos. O cérebro também marca o tempo, por uma escala bem grande, mesmo de microssegundos, para minutos, horas e dias. Mas a grande diferença é que o cérebro tem muitos mecanismos diferentes, especializados em funções específicas. Temos o relógio circadiano, que não tem o ponteiro dos segundos, apenas o das horas, que nos indica se é de noite ou de dia, se é hora de dormir ou de comer. Para este relógio circadiano nem é necessário um cérebro; as plantas e as bactérias também o têm, é mais molecular, baseado na Bioquímica. Depois, temos outros mecanismos do cérebro em que é ao contrário, só existe o ponteiro dos segundos; são mais neurais, bioelétricos, e dão-nos habilidade de tocar música, de prever se um semáforo vai mudar, de praticar desporto, de percecionar as pausas no discurso.
Porque o tempo é importante para o nosso cérebro?
Na minha opinião, as funções mais importantes do cérebro são de natureza temporal. A função principal do cérebro é prever o futuro. As memórias não são simples reminiscências, não servem para revisitar o passado, mas para prever e preparar o futuro, saber, por exemplo, onde vamos conseguir obter comida ou água, onde vão estar predadores ou onde vamos arranjar abrigo. Para fazer isso, o cérebro precisa de ter relógios, precisa de ter habilidade de prever quando o Sol vai raiar ou quando os predadores sairão para obter comida. Há também o tempo subjetivo, de perceção da transição entre passado, presente e futuro, e, por último, existe a habilidade de viajarmos no tempo mentalmente, que é algo único nos humanos, o aprender com o passado e agir para um futuro mais distante. Se pensarmos na agricultura… plantamos uma semente, cuidamos do rebento e daqui a um tempo temos alimentos. É um conceito relativamente simples, no entanto somos a única espécie com esta capacidade de fazer algo hoje para obtermos uma recompensa daqui a um ano.
Como o entendimento da passagem do tempo nos pode ajudar?
A noção da clara diferença entre o passado, sobre o qual não temos controlo, o presente, no qual podemos agir, e o futuro, que podemos alterar, é a base da existência humana. Entender esta capacidade é o que nos dá a habilidade de interagir com o mundo exterior, que está em constante mudança.
A tecnologia está relacionada com essas viagens no tempo mentais?
Todas as nossas invenções e investimentos na Ciência e na tecnologia, o trabalho e o estudo que fazemos, têm implícita essa capacidade cognitiva de viajar no tempo.
Os humanos estão orientados para o futuro?
Sim, é um dos aspetos que mais nos distinguem dos outros animais, essa capacidade de imaginar o futuro, o que não quer dizer que sejamos muito bons nisso. Algumas das nossas deficiências residem no facto de não pensarmos suficientemente no futuro. Acontece isso, por exemplo, com as alterações climáticas. Temos uma visão clara das consequências da ação humana, mas não agimos de modo suficientemente eficaz.
Por que razão isso acontece?
O cérebro é uma máquina de processamento de informação, incrivelmente sofisticada, mas está longe de ser perfeita. Em muitos aspetos, ele está muito mal desenvolvido. Se lhe perguntar quanto é 333 dividido por 7 602… Os humanos geralmente não conseguem fazer essas contas, mas trata-se de um cálculo muito simples. E isto não é assim tão surpreendente. Os seres humanos não evoluíram para viver no mundo atual. Durante a maior parte da evolução humana, o tempo médio de vida era de 30 anos. Por isso, era normal que tivéssemos uma visão curta, era muito difícil planear o futuro. Somos extremamente privilegiados em, atualmente, ter esta esperança de vida longa. Mas a nossa capacidade de prever o futuro não evoluiu tanto quanto seria necessário. É aquilo que designo como brain bugs. O cérebro está desatualizado, não foi otimizado para viver no mundo em que hoje vivemos.
Quando escreveu os seus livros e expôs os mecanismos cerebrais, tinha esperança de ajudar as pessoas a tomar melhores decisões?
Sim, mas para melhorar a nossa capacidade de tomar decisões, sejam essas decisões sobre a nossa vida pessoal (se fazemos exercício, se temos uma alimentação saudável) ou decisões políticas (em quem votamos) ou decisões a longo prazo sobre o que podemos fazer pelo ambiente… Primeiro, temos de perceber e aceitar que o órgão que toma essas decisões é imperfeito e não é particularmente bom a tomar determinadas decisões. O exemplo mais óbvio é o dos cálculos numéricos. Mas isso também se aplica às decisões que tomamos e que afetam as nossas vidas e a sociedade. Se percebermos isso, também conseguimos perceber que o cérebro tem a capacidade de aprender e de usar outras partes dos neurocircuitos para reconhecer as partes menos perfeitas e tentar melhorá-las. Ao estudar o cérebro, estamos a ajudá-lo a usar melhor os seus pontos fortes e a reconhecer as suas fraquezas.
Durante a pandemia, muitas pessoas tiveram dificuldade em aceitar o que os especialistas lhes diziam. Porque surgem estas desconfianças em relação à Ciência?
A pandemia foi um claro exemplo de como funcionam os brain bugs, das falhas e deficiências dos nossos cérebros. E o movimento de antivacinas revela como algumas pessoas se mostraram hesitantes em aceitar os conselhos dos especialistas. O que é um paradoxo, porque muitas delas, se estiverem doentes, vão ao médico e confiam na opinião deste profissional. No que diz respeito às vacinas, existem razões muito complexas. Certamente, uma tem que ver com a politização das vacinas, sobretudo nos EUA, mas há algo mais básico. Desde que as vacinas foram inventadas, há 200 anos, sempre houve movimentos de antivacinas. Na minha opinião, isso reflete as nossas crenças inatas de que não é boa ideia injetar ou incorporar patogenos no nosso corpo. Durante a evolução humana, as doenças foram algo poderoso e perigoso. A peste bubónica, por exemplo, provocou a morte de um quarto da população europeia. Evoluímos por forma a ter medo dos patogenos. E a noção de injetar um patogeno (ainda que seja apenas uma parte, com segurança), no corpo, está instintivamente a despertar medos.
Reconhecer que o cérebro é tão facilmente manipulável é também importante para não cair nas armadilhas da publicidade e da propaganda política?
O cérebro, para o bem e para o mal, é suscetível à manipulação. Temos toda uma indústria publicitária, na qual as empresas gastam milhões para nos encorajar a comportarmo-nos de certa maneira. No século XX, gastaram-se mais de mil milhões para vender cigarros, e isso resultou em cerca de 100 milhões de mortes. Não estou a dizer que a publicidade é má, mas, às vezes, pode encorajar-nos a fazer algo que não é bom para nós. É o que está a acontecer com os movimentos de antivacinação e também na política, em tantos países, inclusive nos EUA, particularmente durante a eleição de Trump. Os nossos brain bugs são explorados por forma a levar-nos a tomar decisões, a optar por uma certa linha, em parte porque apelam mais à emoção do que à razão.
Quando o mundo parece tão incerto, como atualmente, a capacidade de prever o futuro tem algum uso?
Sim, claro. Temos de ser cuidadosos quando dizemos que o mundo atual é imprevisível. De muitas formas, é mais previsível do que era no passado. A esperança média de vida continua a ser muito maior do que há 100 anos. Ainda estamos a dar passos na direção certa, embora com algumas quedas pontuais. A nossa preocupação deve ser sempre melhorar a esperança média de vida e garantir que as pessoas tenham acesso a comida, cuidados de saúde e casa.
Num dos seus livros, cita Jorge Luis Borges: “Com exceção do Homem, todas as criaturas são imortais, pois ignoram a morte.” Ser capaz de entender o conceito do tempo pode ser uma bênção e uma maldição?
Exatamente. Aquilo de que falávamos em termos de prever o futuro, de fazer planos a longo prazo, isso é certamente uma dádiva, porque nos permite dedicar à agricultura, garantir que temos alimentos para o inverno, fazer exercício, tomar remédios, desenvolver a Ciência e a tecnologia, mas a determinada altura os humanos perceberam que – oh, maldição! – iriam morrer. Somos os únicos animais que entendem que não são imortais. Na minha opinião, a religião também surgiu como forma de lidarmos com a mortalidade.
É ateu?
Sim. Muitos cientistas são ateus, porque aprenderam a tomar decisões baseadas na evidência. A religião requer fé. Outra questão mais profunda é, enquanto cientistas que estudamos o cérebro, saber por que razão as pessoas são religiosas. Para muitas pessoas, a religião tem uma função, tal como outros comportamentos (o medo, a curiosidade, o amor…). São comportamentos, emoções e crenças evolutivamente adaptáveis. O facto de a religião continuar a ser tão universal, apesar de não existirem evidências científicas, é porque queremos acreditar.
Que implicações práticas poderá ter o seu estudo sobre a forma como o cérebro perceciona o tempo?
A maior parte do meu trabalho é fundamental para ajudar a compreender a natureza humana. Quanto a implicações clínicas, temos de ser cuidadosos e não exagerar nos resultados. Não estamos a tentar curar uma doença; estamos apenas a tentar perceber como funciona o cérebro e, se o conseguirmos, no futuro poderemos ajudar a curar doenças.