A pessoa desperta após uma boa noite de sono, se levanta da cama e, na hora em que coloca os pés no chão, sente um choque ou uma pontada no calcanhar, que vem de baixo para cima. Ela precisa, então, andar na ponta dos dedos enquanto se troca, vai ao banheiro ou prepara o café da manhã.
Essa cena, que acontece em algum momento da vida com até 10% da população, é a descrição típica de uma doença conhecida como fascite plantar.
Ela costuma aparecer após a terceira ou quarta década de vida e é causada por uma série de fatores, que vão desde o uso de sapatos inadequados até o excesso de peso.
“Trata-se de uma dor que afeta muito a qualidade de vida da pessoa e, caso não seja tratada, pode levar a outras disfunções nos joelhos, no quadril e até na coluna”, alerta a ortopedista especialista em pés Fernanda Catena, do Hospital 9 de Julho, em São Paulo.
A boa notícia é que o tratamento desse problema evoluiu muito nos últimos anos — hoje em dia, existem opções de fisioterapia e intervenções no local da dor que permitem apelar para cirurgias só em último caso.
Mas, antes de saber os detalhes de todas essas opções terapêuticas, é preciso entender o que é fascite plantar.
Uma ‘ponte’ que liga dedos e calcanhar
A fáscia plantar é um ligamento que nós temos nos pés. Ela é responsável por conectar o calcanhar com os ossos dos dedos.
“Essa estrutura é importante para a qualidade da marcha e a propulsão dos passos. Quando tiramos os pés do solo, esse movimento depende em grande parte do trabalho da fáscia plantar”, ensina Catena.
O problema é que este ligamento pode inflamar por uma série de motivos, sobre os quais falaremos mais adiante.
“E a inflamação, que geralmente se concentra na base do calcanhar e gera a dor, é o que chamamos de fascite plantar”, diz o ortopedista especialista em pés e tornozelos Marco Túlio Costa, que trabalha no Instituto Cohen e no Hospital Israelita Albert Einstein, ambos na capital paulista.
Antigamente, se acreditava que a fascite estava relacionada ao aparecimento de um esporão, uma formação óssea que supostamente apertava o ligamento.
“Hoje, sabemos que a dor está relacionada com a própria inflamação”, diferencia o médico, que também é chefe do Grupo de Pé e Tornozelo da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Mas, afinal, o que inflama essa estrutura tão importante para nossos movimentos?
Costa explica que uma das causas mais comuns da fascite é a falta de alongamento da musculatura que compõe as coxas e as pernas.
“Se esses músculos não estão suficientemente alongados, há uma sobrecarga para os pés, especialmente para as fáscias.”
“Outro causador frequente da fascite são os impactos repetitivos que provocam microtraumas, como aqueles que aparecem nos corredores de rua”, exemplifica o especialista.
A fáscia plantar (em azul claro à esquerda e em cinza na base do pé à direita) dá sustentação e permite os movimentos das passadas — Foto: Getty Images via BBC
A própria formação do corpo também pode estar por trás do problema: pés chatos (sem aquela curvatura natural) ou muito arqueados também são promotores de inflamação na fáscia.
Nesse contexto, não dá pra ignorar o impacto do sobrepeso ou da obesidade — os quilos extras geram uma carga excessiva sobre ossos, articulações, tendões e ligamentos — e do uso inadequado de calçados, que tiram o balanço natural dos pés.
Por fim, Catena lembra dos fatores biológicos que instigam o quadro. “Indivíduos mais velhos, com diabetes descontrolado ou que fumam podem sofrer mais com a inflamação que afeta diferentes partes do organismo, como a fáscia”, complementa.
Nem toda dor no pé é fascite
Agora que você já entendeu o básico sobre esse problema, é importante fazer um alerta: só o médico pode fazer o diagnóstico adequado e propor o melhor tratamento.
“Muitas vezes, recebemos no consultório pacientes que dizem ter fascite plantar. Daí, quando examinamos, descobrimos que a dor não é na região do calcanhar, mas, sim, no peito do pé ou na ponta dos dedos”, relata Catena.
Esses outros incômodos podem ser causados por várias condições, como microfraturas, inflamação no calcanhar de aquiles, tendinites, joanetes, calos…
E, para cada uma delas, há um tratamento específico — afinal, de nada adianta ficar tomando anti-inflamatórios sem parar quando o seu problema está num osso trincado ou em dedos deformados de tanto usar salto alto de bico fino.
Para fechar o diagnóstico da fascite plantar, além da análise física, feita durante a consulta, o ortopedista pode requisitar alguns exames de imagem, como ultrassom ou ressonância magnética.
Problema detectado, chegou a hora de conhecer as opções para resolver (ou aliviar) a situação.
Arsenal terapêutico ampliado
Foi-se o tempo que a cirurgia era a única opção disponível para lidar com as agulhadas no calcanhar.
A primeira linha de cuidados envolve sessões de fisioterapia e exercícios de alongamento ou fortalecimento muscular, com foco especial nas pernas e nos pés.
“Para aliviar a dor e a inflamação, sugerimos colocar uma garrafinha de 600 ml com água no refrigerador até congelar. Depois, o paciente fica rolando o objeto no chão com a planta dos pés”, indica o ortopedista.
“O uso de calçados de boa qualidade, como tênis que tem uma boa capacidade de amortecimento, também ajuda”, complementa.
As cirurgias contra a fascite plantar só está indicada para a minoria de casos que não melhora com fisioterapia, exercício e infiltrações — Foto: Getty Images via BBC
Tratar possíveis fatores que promovem a inflamação — como tabagismo, excesso de peso e diabetes — é outra ação que permite cortar o mal pela raiz.
Ainda dentro das recomendações básicas, a prática de atividades físicas é essencial, especialmente para aqueles que precisam emagrecer. O segredo aqui é buscar uma modalidade que não force tanto os pés, mas permita queimar calorias. Nesse cenário, natação e ciclismo geralmente são boas opções.
Se as primeiras tentativas falharem, o médico costuma partir para uma segunda estratégia.
“Podemos utilizar uma terapia de ondas de choque, feita por meio de um aparelho, ou realizar infiltrações e injeções no local afetado”, exemplifica Catena.
A meta é promover a regeneração do ligamento e acabar com aquela inflamação toda.
Esse conjunto de alternativas funciona em mais de 90% das vezes. Porém, caso o pé continue a doer após seis meses de tentativas frustradas, será preciso apelar para a cirurgia.
“Costumo dizer que, se o paciente não alonga os músculos e a fáscia adequadamente, eu terei que fazer isso com o bisturi”, brinca Costa.
Mas mesmo as intervenções cirúrgicas ficaram mais simples nos últimos tempos. “Atualmente, os cortes são menores e podem ser feitos por via endoscópica, através de furinhos menos invasivos”, conta o médico.
Alguns especialistas também preconizam que a operação seja feita nos músculos da perna, e não na fáscia plantar, já que, em muitos casos, a falta de alongamento dessas estruturas gera a inflamação no ligamento da planta do pé.
E, claro, todos esses recursos — dos mais simples aos rebuscados — funcionam melhor se o diagnóstico da fascite é feito logo nos estágios iniciais.
Isso garante menos dor, menor risco de complicações em outras partes do corpo e pés livres e leves para caminhar ou correr sem grandes preocupações.